Foram dois dias em que mais de 60 pessoas expuseram pesquisas, experiências pessoais, opiniões e dados. Nesta segunda, o Supremo Tribual Federal (STF) encerrou o segundo e último dia de audiência pública para debater a ação apresentada pelo PSOL, com assessoria técnica do Instituto de Bioética Anis, que pede que o aborto não seja considerado crime quando feito até a décima segunda semana de gravidez.
Em alguns momentos do debate houve comoção, como quando o médico Sérgio Tavares de Almeida Rego revelou, emocionado, a história pessoal da família. Ele e a esposa já tinham um filho de um ano com deficiência quando ela engravidou novamente. Os dois optaram por um aborto para poderem se dedicar integralmente a Pedro, a quem chamou de “filho eterno”, que precisa de cuidados também na vida adulta.
Falando contra a descriminalização, Lenise Aparecida Martins Garcia, do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil sem aborto, levou um feto de borracha à audiência para ilustrar seu ponto de vista. “É arbitrária a definição de 12 semanas (como início da vida humana). Eu não posso desconsiderar o valor de uma pessoa porque ela é pequenininha. Ela tem mãe e pai. É uma de nós.”
E a pesquisadora Débora Diniz, da Universidade de Brasília e do Instituto Anis, expôs dados que mostram que uma em cada cinco mulheres brasileiras de até 40 anos já fez um aborto. Mas a criminalização, ela destaca, têm impacto maior nas mulheres pobres, que acabam recorrendo a métodos inseguros para interromper a gravidez.
“Se todas as mulheres que fizeram aborto estivessem na prisão hoje, teríamos um contingente de 4,7 milhões de mulheres, pelo menos cinco vezes o sistema prisional, que já é o quarto do mundo. Por que tão pouca razoabilidade nessa conversa? Aborto não é matéria de prisão, é de cuidado, de proteção e prevenção”, defendeu, sendo aplaudida de pé após a fala.
Mas o que vai acontecer a partir de agora? Quando o caso será julgado? E quais ministros já se posicionaram publicamente sobre o pedido de descriminalização do aborto?
Como será o julgamento
A partir do término das audiências, um relatório com as falas de quem participou será distribuído a todos os 11 ministros da Corte, para consultarem, se quiserem, ao redigirem seus votos.
A relatora da ação, ministra Rosa Weber, deverá preparar o voto e o relatório do caso – um resumo das alegações do PSOL e do posicionamento dos órgãos chamados a se manifestar, como a Advocacia-Geral da União (AGU). Não há prazo para isso.
No julgamento de um habeas corpus em 2016, a ministra se posicionou favoravelmente a que o aborto deixe de ser crime. Por isso, há uma expectativa de que Weber se manifeste a favor do pedido para que o aborto seja descriminalizado.
Após concluir o voto, Rosa Weber deve pedir a inclusão do processo na pauta de julgamento do plenário do Supremo.
A decisão sobre que processos são julgados em cada mês é tomada pelo presidente do STF, após consulta aos colegas. Possivelmente, quando o voto de Rosa Weber estiver pronto, a ministra Cármen Lúcia já terá deixado a presidência do Supremo, sendo substituída por Dias Toffoli, que toma posse em setembro para um mandato de dois anos.
A BBC News Brasil apurou que a expectativa dos ministros e do futuro presidente do Supremo é que o julgamento sobre aborto fique para o ano que vem, já que este ano tem eleições gerais e há outros processos prontos para julgamento no plenário.
O que pede a ação sobre aborto
A Ação Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 argumenta que os artigos do Código Penal que proíbem o aborto afrontam preceitos fundamentais da Constituição Federal, como o direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros.
O PSOL pede que o aborto feito até a décima segunda semana de gestação não seja considerado crime. As advogadas que assinam a ação afirmam que a criminalização do aborto leva muitas mulheres a recorrer a práticas inseguras, provocando mortes.
Atualmente o aborto é crime, com pena de até três anos para a gestante que interromper a gravidez. Só é permitido fazer um aborto em caso de estupro, risco de vida para a mãe ou feto com anencefalia – nesse último caso, a deliberação coube ao STF.
Como devem votar os ministros?
Três ministros do STF – Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Edison Fachin – já votaram pela descriminalização ao abordar um pedido de habeas corpus de cinco médicos e funcionários de uma clínica clandestina de aborto.
A decisão, tomada pela Primeira Turma do STF em novembro de 2016, vale apenas para aquele caso concreto, mas já é um forte indicador de como pensam esses três magistrados.
Na ocasião, os ministros Marco Aurélio Mello e Luiz Fux, que participaram do julgamento, também concederam o habeas corpus, mas não se posicionaram sobre se o aborto, de forma geral, deveria deixar de ser crime.
Ricardo Lewandowski é visto como voto certo contra a descriminalização do aborto, já que ele votou contra permitir a interrupção da gravidez até em casos de fetos que não seriam capazes de sobreviver após o parto (em julgamento de 2012 sobre fetos com anencefalia). Há dúvidas sobre o voto dos demais ministros, mas comentários já feitos por eles podem dar pistas.
Qual o argumento dos ministros que já se posicionaram sobre a descriminalização
Luís Roberto Barroso
O primeiro voto pela descriminalização foi proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, ao julgar um pedido de liberdade feito por cinco pessoas envolvidas em procedimentos de aborto.
Barroso argumentou que os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto violam os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, além dos direitos fundamentais à autonomia, à integridade física e psíquica, e à igualdade.
“Como pode o Estado, isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito, impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?”, questionou o ministro, no julgamento.
Ele defendeu ainda que criminalizar o aborto não é uma política eficiente para evitar que interrupções de gestações aconteçam – apenas impede, afirma, que os abortos sejam feitos com segurança. Ou seja, a criminalização não protegeria nem a “vida do feto” nem a da mulher.
“Ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro”, argumentou.
Para embasar esse argumento, ele citou um estudo da pesquisadora Gilda Sedgh, do Instituto Guttmacher, de Nova York, que aponta que, em países onde o aborto é crime, as taxas de aborto chegam a ser mais altas que as de nações onde o procedimento é legalizado.
“Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido, criminalizar a posição do outro”.
Rosa Weber
Ao acompanhar o voto de Barroso que considerou a criminalização do aborto inconstitucional, Rosa Weber argumentou que as mulheres devem ter o direito de interromper de forma segura uma gestação indesejada.
Para embasar os argumentos, ela citou tratados internacionais de direitos humanos e decisões judiciais de cortes de outros países, como o famoso caso “Roe vs Wade” na Suprema Corte americana, que abriu o caminho para a legalização do aborto nos Estados Unidos, em 1973.
“O aborto clandestino é realidade ascendente dos países que não disciplinaram juridicamente a prática da interrupção da gravidez por decisão da mulher no primeiro trimestre da gestação, que implica sérios riscos de saúde e aumento da mortalidade materna por complicações dos procedimentos clandestinos de aborto, os quais são utilizados pelas mulheres que não possuem condições econômicas de custear o tratamento particular”, argumentou a ministra.
Assim como Barroso, Rosa Weber citou pesquisas que apontam que os países com as legislações mais restritivas ao aborto são os que têm as maiores taxas de interrupção provocada da gravidez.
“A ingerência estatal no primeiro trimestre da gestação deve militar em favor da proteção da mulher em ter condições seguras de realizar a interrupção voluntária da gestação.”
Edson Fachin
Embora não tenha especificado os argumentos, Fachin decidiu acompanhar a posição de Barroso em vez de seguir os fundamentos de Marco Aurélio, relator do caso, para a concessão do habeas corpus às cinco pessoas presas preventivamente por fazerem abortos clandestinos. O efeito dos votos de Marco Aurélio e de Barroso era o mesmo – a concessão da liberdade ao grupo.
A diferença é que o primeiro concedeu o habeas corpus por considerar que a prisão preventiva já não se justificava – os suspeitos não ofereceriam perigo às investigações, nem indicavam intenção de fugir. Barroso foi além e disse que o aborto, de forma geral, não pode ser considerado crime, se feito com consentimento da gestante até o terceiro mês de gravidez. Portanto, na visão do ministro, aquelas pessoas nem sequer deveriam ter sido processadas.
Ao acompanhar Barroso na visão de que a criminalização do aborto é inconstitucional, Fachin lembrou, a título apenas de “comentário”, que o Papa Francisco abriu a possibilidade para que sejam absolvidas, mediante confissão, mulheres e profissionais de saúde que tiverem feito abortos.
A posição dos demais ministros
Os demais ministros ainda não se manifestaram diretamente sobre o tema. Alguns fizeram comentários que dão indícios sobre como enxergam a criminalização do aborto.
Gilmar Mendes
Durante uma sessão de julgamento do dia 23 de março, Gilmar Mendes criticou Barroso por ter entrado no mérito da descriminalização do aborto no julgamento do habeas corpus do grupo que operava a clínica clandestina. Para Mendes, o tema só poderia ter sido discutido em plenário numa Ação Por Descumprimento de Prefeito Fundamental (ADPF), e não na análise de um pedido específico de liberdade.
“É preciso que a gente denuncie isto, que a gente anteveja esse tipo de manobra, porque não se pode fazer isso com o Supremo Tribunal Federal: ‘Ah, agora eu vou dar uma de mais esperto e vou conseguir a decisão do aborto, de preferência na turma com dois, com três ministros, aí a gente faz um dois a um'”.
Alexandre de Moraes
O ministro Alexandre de Moraes se esquivou de responder a perguntas sobre aborto quando foi sabatinado pelo Senado antes de assumir uma cadeira no Supremo. Na época, ele argumentou que não poderia antecipar o voto, já que havia ações sobre o tema no STF.
Ricardo Lewandowski
Lewandowski votou contra a liberação do aborto em caso de feto com anencefalia (com formação incompleta do cérebro a ponto de ser inviável a vida do bebê). O placar do julgamento de 2012 foi 8 a 2, com a maioria optando por permitir a chamada “antecipação terapêutica” do parto nesses casos.
Como Lewandowski foi um dos dois votos contrários, é natural esperar que ele também não seja favorável à descriminalização de forma mais ampla.
Na julgamento de 2012, o ministro argumentou que qualquer decisão sobre tema deve ser tomada pelo Legislativo e que permitir o aborto no caso de fetos sem cérebro abriria caminho para interrupções de gestação de embriões com doenças genéticas.
José Dias Toffoli
Antes de tomar posse como ministro, Toffoli afirmou, em sabatina no Senado, que criminalizar o aborto não é uma política eficaz.
“Eu sou contra o aborto. Agora, penso que a sociedade deve debater quais os mecanismos mais eficientes para diminuir o número de abortos no país. Porque criminalizar o aborto não é um meio eficaz.”
Luiz Fux
Em entrevista à BBC News Brasil, Luiz Fux afirmou considerar que o tema deve ser debatido pelo Legislativo, não pelo Supremo.
“Eu tenho a impressão de que algumas questões são judicializadas porque o Parlamento não quer pagar o preço social de tomar a decisão adequada. Mas, na verdade, o lugar próprio de decidir sobre a descriminalização do aborto é o Parlamento e não o Supremo Tribunal Federal”, disse.
Mas, na mesma entrevista, ele também ponderou que o aborto deve ser visto como uma questão de “saúde pública”, visão normalmente defendida por grupos favoráveis à descriminalização.
“Entendo que é um problema de saúde pública que a sociedade tem que decidir por meio de seus representantes. Agora, o Judiciário pode vir a ser provocado sobre essa questão. E então, num momento oportuno, vou me manifestar”, afirmou à BBC News Brasil.
Cármen Lúcia
Cármen Lúcia votou a favor da liberação do aborto em caso de feto anencéfalo e a favor de pesquisas com células tronco embrionárias, mas nunca entrou no mérito sobre se criminalizar o aborto de forma geral é ou não uma violação da Constituição.
Marco Aurélio Mello
Foi o relator da ação que permitiu aborto em caso de feto com anencefalia – e votou a favor de permitir o procedimento nesse caso. “O Estado não é religioso nem ateu. O Estado é simplesmente neutro. O direito não se submete à religião’, disse o ministro, na ocasião.
“O que está em jogo é a privacidade, a autonomia e a dignidade humana dessas mulheres. Elas têm que ser respeitadas, tanto as que optam por prosseguir com sua gravidez como as que preferem interrompê-la para pôr fim ou minimizar um estado de sofrimento.”
Mas ele não se manifestou publicamente sobre a possibilidade de descriminalizar o aborto de forma geral, até o terceiro mês de gestação.
Celso de Mello
O ministro Celso de Mello também votou a favor da chamada “antecipação terapêutica do parto” (interrupção da gravidez) em caso de anencefalia. Mas, até agora, não fez comentários públicos sobre permitir o aborto até a décima segunda semana.
Nos bastidores, já comentou que a criminalização pode, eventualmente, ser vista como uma violação a tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil.
Fonte: BBC Brasil.
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